terça-feira, 17 de março de 2009

Forma Romanesca, Reificação, Ideologia do Existente.


A forma romanesca tem sua vertente no romantismo, tanto que sociólogos notáveis como Lucien Goldmann recorrem à classificação de Goethe para situar o marco do avanço da forma romanesca no fim do período poético.

Na leitura de Ernst Bloch[1] observamos que a análise da contradição contemporânea põe em relevo a aspiração ao homem completo como a forma de alguma coisa que falta e que se descobre na esperança histórico-filosófica. Sobressai igualmente a pesquisa do concretamente utópico constatado nas superestruturas da intensa modernização e acelerado crescimento industrial dos anos vinte na Alemanha. Essas linhas aportam luzes não só para a sociologia da literatura, mas, particularmente, favorece a compreensão do romance como forma literária específica do mundo moderno, notadamente em relação à produção de avant-garde.

O romance corresponde ao desenvolvimento da sociedade burguesa e do mundo capitalista na medida em que põe em obra a história de uma busca, uma aspiração implicando uma biografia individual. Todavia, como se sabe, o imenso progresso da forma romanesca no século XIX constitui um indicativo seguro do fenômeno superestrutural da reificação, notado inclusive no plano da composição, onde a biografia individual nutrida de aspiração enseja a forma romanesca exatamente não só porque deve necessariamente decepcionar, mas porque segrega as razões de sua degradação em crônica social.

Com efeito, a forma romanesca tem sua vertente no romantismo, tanto que sociólogos notáveis como Lucien Goldmann recorrem à classificação de Goethe para situar o marco do avanço da forma romanesca no fim do período poético, onde o criador se sentia ainda em acordo com a sociedade, onde a arte e a literatura passavam por ser uma criação natural – concepção esta atribuída ao notável poeta romântico do século XVIII Schiller [2], igualmente defensor da poesia histórica.

Vale dizer, a forma romanesca nos escritores como Balzac, Stendhal, Flaubert, Zola, Malraux, Thomas Mann, Pasternak, etc., estes já no século XX, os permitiu colocar em obra ao mesmo tempo o problema da busca do humano em um mundo que lhe é contrário e descrever a essência deste mundo inóspito[3].

A compreensão sociológica do romance em nível de superestruturas assenta-se em dois campos de pesquisa, seguintes: (a) – pesquisar o romance como o único gênero literário no qual a ética do romancista torna-se um problema estético da obra; (b) – pesquisar a relação entre a forma romanesca ela mesma e a estrutura social na ambiência da qual se desenvolveu, isto é, as correlações do gênero romance com a sociedade individualista moderna [4]·.

Admitindo que valores ideais autênticos encontram-se implícitos no horizonte do romancista, onde permanecem abstratos e constituem o caráter ético, surge o problema de saber como se faz que esses valores venham a se tornar elementos essenciais de uma obra artística literária como o romance.

Afirma-se inicialmente a compreensão de que a literatura romanesca se desenvolve com relativa autonomia tanto em relação à consciência real quanto à consciência possível de um agrupamento social particular. Isto porque houvera uma transposição direta da vida econômica nessa criação literária. Ademais, do ponto de vista da relativa autonomia, se constataria igualmente nas sociedades de mercado uma modificação significativa do estatuto das consciências individual e coletiva. Em modo implícito, essa modificação se estenderia ao campo sociológico das relações entre infra e superestruturas, de tal sorte que os paralelismos entre as estruturas econômicas e as manifestações literárias romanescas teriam lugar no exterior da consciência coletiva [5].

Desta forma, aprofundando no individualismo e elaborando para além do âmbito de toda a comunicação social, a teoria psicossociológica de Lucien Goldmann pauta-se na pesquisa daquela "modificação radical" nos níveis superestruturais.

Admitindo que valores ideais autênticos encontram-se implícitos no horizonte do romancista, onde permanecem abstratos e constituem o caráter ético, surge o problema de saber como se faz que esses valores venham a se tornar elementos essenciais de uma obra artística literária como o romance.

Indagação esta procedente na medida em que as idéias abstratas não têm lugar em uma obra artística literária, onde constituiriam elemento heterogêneo, só podendo ser afirmadas, entretanto, sob o modo de uma ausência não temática, ou presença degradada.

Com efeito, para esta pesquisa dá-se prioridade exclusiva à situação dos escritores que buscam pôr em obra uma visão individualista com mirada universal, tendo por base o próprio contexto de crise do individualismo, que marca a segunda metade do século XIX.

Admite-se uma distinção fundamental entre a obra propriamente literária e os escritos conceituais. Quer dizer, a possibilidade para o escritor fazer obra literária, criar universos imaginários concretos com mirada realista revela-se estreitamente ligada à certeza de sua aspiração, à fé em valores humanos afirmados como universalmente acessíveis a todos os homens.

Por sua vez, os escritos conceituais revelam-se corresponder pelo contrário à ausência de fé na aspiração assumida, seja sob a forma da desilusão ou de uma "elite criadora" [6].

***

A teoria Psicossociológica e o Individualismo

O tema da pressão da ação, implicando a imposição de fins e objetivos no mundo, constitui o aspecto central da situação psicossociológica dos escritores burgueses engajados em pôr em obra literária romanesca uma visão individualista.

Podemos então observar que, ao afirmar a percepção diferencial da certeza de uma aspiração criadora na base da obra literária, a teoria psicossociológica de Lucien Goldmann reconhece o elemento postulativo histórico-filosófico de que nos falou Ernst Bloch.

Por outras palavras, a afirmação da fé na aspiração assumida, como critério diferencial na teoria psicossociológica de Lucien Goldmann, deve ser relacionada à noção de utopia positiva ou esperança utópica, já que revela em sentido amplo a compreensão do foco criador constitutivo dos valores ideais humanos como vontade de paraíso, à qual Ernst Bloch referiu "o retorno do mais antigo sonho (atividade onírica indormida)".

Não que este paralelo sirva simplesmente para indicar afinidades intelectuais. É mais do que isto. Com efeito, ao diferenciar a vontade de paraíso na acessibilidade dos valores qualitativos, Ernst Bloch configura a mirada que traz um aprofundamento do fenômeno da reificação e viabiliza em nível de postulado a observação e descrição da realidade crítica mais contundente para o individualismo.

Ou seja, a mirada da vontade de paraíso, por seu alcance histórico-filosófico, põe em relevo a ideologia do existente, o agarramento à vontade de viver como pressão específica ressentida pelo indivíduo, ordinariamente confundida a uma projeção do princípio de autoconservação individual, mas que, em maneira outra, limita-se a subordinar o viver à vontade mundana, penetrada esta que é pela ação em sua racionalidade moderna como meio de mero prestígio, portanto, embebida no apelo do êxito e identificada à própria busca de fins no mundo.

Sobressai, então, que o tema da pressão da ação como tal, implicando a imposição de fins e objetivos no mundo, constitui o aspecto central da situação psicossociológica dos escritores burgueses engajados em pôr em obra literária romanesca uma visão individualista. Além disso, penetrará em todos os modelos de romance.

Mas não é tudo, Ernst Bloch tira de Schopenhauer que a vontade de viver existe, é verificável, mas não deveria existir, não é verdadeira, no sentido em que, na tradição literária, fala-se de "verdadeira tempestade" ou se reconhece um "verdadeiro amigo" [7]. Quer dizer a vontade de viver não se afirma carregada de densidade afetiva, mas é meramente existente, está aí.

Na prática, a redução da realidade do indivíduo para o objeto inerte somente se viabiliza na medida em que passa pela ideologia do existente.

Desta forma, na pesquisa dos paralelismos entre as estruturas econômicas e as manifestações literárias, constatados no exterior da consciência coletiva, podemos destacar a observação da ideologia do existente sendo diferenciada como tendência substitutiva imbricada no pensamento reduzido às relações de mercado, identificado aos valores de troca.

Contemplando a categoria da mediação como introduzindo em nível implícito uma modificação radical nos termos da oposição infra-estrutura/superestruturas, a teoria psicossociológica põe em relevo a partir do comportamento econômico dos indivíduos uma tendência para substituir o pensamento conformado aos valores de troca.

Ou seja, podemos notar a ideologia do existente sendo diferenciada nessa tendência substitutiva como viabilizando na prática a virtual falsa consciência total, na qual o valor mediador torna-se valor absoluto e o valor mediado desaparece inteiramente.

Como se sabe no estudo do romance ao século XX constatou-se, por um lado, a transformação da unidade estrutural personagem/objetos como levando não somente ao desaparecimento mais ou menos acentuado do personagem, mas, correlativamente, acentuando o reforço da autonomia dos objetos.

Constatação esta que logo faz lembrar a observação de que, com o estabelecimento do capitalismo organizado a partir da segunda metade do século vinte, as estruturas auto-reguladoras da economia de troca levam ao deslocamento progressivo do que, aprofundando no fenômeno da reificação, Lucien Goldmann chamou coeficiente de realidade do indivíduo cuja autonomia e atividade são transpostas para o objeto inerte. Ora, acontece que, se nos aprofundarmos no âmbito das significações práticas, veremos a viabilidade dessa redução da realidade do indivíduo para o objeto inerte como passando impreterivelmente pelo crivo da ideologia do existente [8].

Por contra, será da acessibilidade dos valores humanos, na medida em que incluem o elemento postulativo já mencionado; serão das constatações de suas condições e possibilidades para o indivíduo em face da ideologia do existente, bem como das atitudes do escritor a respeito disto, que a teoria psicossociológica se desenvolverá. Daí o maior interesse sobre os escritores burgueses. Isto não significa minimizar a composição de seus personagens, já que na arte composicional se tece justamente o móvel do escritor romancista, sua aspiração, tanto mais que no romance a ética do autor, sua experiência ambivalente do individualismo, torna-se ou deve se tornar o elemento estético da obra.

Compreende-se desta forma que os escritores e os artistas sejam provenientes de certo número de indivíduos cujo pensamento e conduta permanecem orientados por valores qualitativos sem que, todavia, consigam subtrair-se inteiramente à existência da mediação degradante. Daí sentirem parcialmente o efeito daquela tendência substitutiva para a falsa consciência em sua ligação à qualidade de sua obra.

Na medida em que aprofunda o estudo do móvel do escritor, a teoria psicossociológica assinala a probabilidade de que o gênero romanesco tenha surgido como expressão não só de um descontentamento afetivo não conceituado, mas da subjacente aspiração à mirada direta dos valores qualitativos.

Vale dizer, a acessibilidade dos valores assim em aspiração constitui o princípio de figuração dos personagens, afirmando-se em conseqüência como a referência central do desenvolvimento da forma romanesca. No estudo histórico do romance as modalidades que se diferenciam são detectadas com prioridade em torno da possibilidade e das condições da biografia individual, relevando para segundo plano a importância das crônicas sociais como critério diferencial, as quais complementam a busca biográfica como elemento composicional.

***

Artigo de autoria de Jacob (J.) Lumier

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Forma Romanesca, Reificação, Ideologia do Existente by Jacob (J.) Lumier is licensed under a Creative Commons Reconocimiento-No comercial-Sin obras derivadas 3.0 Estados Unidos License.
Based on a work at www.oei.es.





[1] Ver: "O Tradicional na Modernização" (obra-manuscrito em finalização no meu Google Docs) e o ensaio publicado "Crítica da Cultura e Comunicação Social".

[2] Friedrich Schiller (Johann Christoph), 1759 – 1805.

[3] Ver Goldmann, Lucien: "Recherches Dialectiques", pág.91.

[4] Ver Goldmann, Lucien: "Sociologie du Roman", págs. 33, 35.

[5] Do ponto de vista das estruturas reificacionais sobressai a supressão de toda a importância essencial do indivíduo e da vida individual no interior das estruturas econômicas. Ver NOTA COMPLEMENTAR 01 NO FINAL desta Introdução.

[6] Ib, ibidem, págs.83, 84.

[7] Ver "Entrevista com Ernst Bloch", in Lowy,M: "Para uma Sociología de los Intelectuales Revolucionários", pág. 259.

[8] Ver Goldmann, Lucien: Pour une Sociologie du Roman, Paris, Gallimard, 1964, 238 págs. Ver igualmente NOTA COMPLEMENTAR 01, no final deste tópico.

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