quinta-feira, 10 de abril de 2008

O estudo sociológico das fossilizações sociais.


Como se sabe, na Phyisiologie Sociale de Saint-Simon há um trecho definindo as fossilizações sociais como obstáculos ao progresso social e bloqueios à percepção da própria mudança, que a atitude afinada com as mudanças deve conhecer não tanto como o seu contrário, mas como seu desafio.

No dizer de Saint-Simon, trata-se daqueles entraves observados em um estado coletivo de melancolia e depauperação que conduz ao desaparecimento da vida social à medida que (a) - inibe de resolver-se por um regime ativo, e (b) - corresponde a uma atitude de repugnância à mudança consentindo em grandes sacrifícios para preservar as coisas tais quais são e as fixar em maneira invariável no ponto onde elas se encontram.

Saint-Simon se refere a tal estado como uma corrente de opinião estacionária, melhor, estagnada, de natureza puramente passiva, e nostálgica de uma forma de governo equiparável àquelas que duraram tantos séculos sem experimentar nenhum estremecimento geral, como houvera durado o “Ancien Régime”.

Segundo Saint-Simon tal estado de fossilização sendo referido ao “Ancien Régime” se mostra sempre pronto a reter e fixar o que é sobrevindo para perpetuar o que existe, impelindo à vigília de um esforço inútil os que têm afinidade com as mudanças [1].

Desta forma, nas fossilizações sociais somam-se as cristalizações dos modelos e a dogmatização das normas sociais que os reforçam. Daí a importância da desdogmatização do saber para o sociólogo em sua busca das variações na realidade social.


Vê-se igualmente que a compreensão do progresso social como horizonte da sociologia inscreve-se na reflexão de Saint-Simon como pesquisa dos obstáculos à modernização, de tal sorte que à luz desse exemplo parece que a atuação do sociólogo se reduz a intervir para acelerar o progresso das mudanças.

Entretanto, o iniciante em nossa disciplina estaria equivocado ao sugestionar-se que a intervenção do sociólogo se reduz a acelerar o progresso das mudanças.


Essa inferência seria justa se o obstáculo assinalado nas fossilizações sociais fosse predominantemente de ordem da morfologia social ao invés de revelar-se suscitante da trama do organizado e do espontâneo. Quer dizer: seria menos destoante e mais conforme ao enfoque saint-simoniano da teoria sociológica a sugestão de que o sociólogo busca preferencialmente não acelerar as mudanças de que o próprio sistema se encarrega, mas sim ultrapassar o conformismo, haja vista em Saint-Simon a repugnância à mudança como a atitude que melhor corresponde às fossilizações sociais.


Na verdade, indo ao fundo da modernização, o que Saint-Simon investiga nas fossilizações sociais e que posteriormente veio a ser designado por mumificação do discursivo são os obstáculos à permanência da vida social em mudança permanente e, neste fluxo, à própria percepção. Daí a constatação do estado de fossilização social como referido ao “Ancien Régime” se mostrando sempre pronto a reter e fixar o que é sobrevindo para perpetuar o que existe.

Sendo sociólogo, Saint-Simon visou esclarecer nesse seu escrito publicado uma situação penetrada por tal estado coletivo estacionário, estagnado, passivo, a colocar em risco o fluxo da sociabilidade e por isso apreendido como obstáculo.

Neste sentido, só é legitimo falar de intervenção do sociólogo unicamente em consideração de sua atividade intelectual docente, seja publicista, seja orientador ou aconselhador posto que, com sua mirada treinada para não sublimar os obstáculos à percepção da realidade social em mudança permanente no interior das estruturas, o sociólogo intervém para esclarecer e desanuviar as situações complexas em meio à trama e tensão do plano organizado e do espontaneismo social, inclusive em escala microssocial e no âmbito dos agrupamentos sociais particulares.


Quer dizer, com autonomia em face da atitude ou da mentalidade que lhe possa corresponder em certo quadro social, as fossilizações sociais são detectadas na realidade social como obstáculos por elas mesmas, e assim são verificadas pelo sociólogo em cujas análises são relacionadas sem embargo às atitudes que lhe correspondem e, se for o caso, inclusive à simbolização de certas condutas significativas para a modernização como o conformismo, por exemplo, que pode assumir configurações muito variáveis[2].

***

Na busca dessas configurações do conformismo como correspondendo às fossilizações sociais, tendo em conta que as mudanças sociais se verificam em profundidade no interior das estruturas, o sociólogo põe em relevo contra a cultura de massa o empirismo pluralista efetivo que se descobre no estudo das manifestações da sociabilidade, fazendo ver ademais que, malgrado os adeptos do psicodrama, os elementos microssociais não têm absolutamente nada a ver com o individualismo, o atomismo e o formalismo sociais, mas criam inclusive referências objetivas ao mundo dos valores, como se constata no estudo microssociológico dos Nós [3] .


Dessa forma, observado, por exemplo, em um sistema de condutas previamente reguladas compreendendo uma ou várias organizações complexas integradas em sociedades mais ou menos penetradas pelo mundo da comunicação social, o conformismo pode ser verificado em uma ambiência microssocial e aparecer como conduta regular afirmando a aceitação em face da recorrência de um ato coletivo tornado instituído como obrigatório.


Quer dizer, como diria Saint-Simon a aceitação estacionária neste caso integra um modelo cristalizado em que para impor como obrigatório o ato coletivo inclui em conseqüência certa ordem ou disposição conformista visando dirigir ou bloquear a manifestação efervescente de um Nós instituinte como forma de sociabilidade.


Ora, muito além do psicologismo e da mera acomodação às condutas dominantes preestabelecidas, e visando compreender essa configuração do conformismo resistindo ao apelo do componente de liberdade em um ato originalmente de escolha multifária deve-se pôr em relevo exatamente no instituído a configuração particular da norma social que reforça e garante a recorrência de tal ato.


Isto porque se constata logo de início que a extensão da cultura de massa com suas imagens do chefe ou do lider alcança somente o estado mental da norma social de reforço, imprimindo a motivação somente psicológica para o conformismo na situação de imposição do patamar organizado sobre um ato em realidade instituinte mas tornado instituído como obrigatório.

Motivação esta resultante do receio de exclusão suscitado pela pressão do maior número, por efeito da qual, sendo compelido ao local do ato, os sujeitos individuais aceitam seu comparecimento não por uma razão nem por motivação de um simbolismo, mas em face de uma censura creditando de antemão que “todo o mundo vai” (comparecer).

A situação que se tem em vista aqui é o regime do voto obrigatório nas eleições praticadas em alguns Estados de Direito democrático, já que em tais regimes é constatado precisamente que a extensão da cultura de massa explica tão só as manifestações das correntes dos sujeitos individuais em direção ao comparecimento massivo nos locais de votação, uma expectativa do sistema, mas não esclarece nem de longe a vigência de tal ato instituinte tornado obrigatório e recorrente.

Ora, acontece que por definição a norma social de reforço ultrapassa o elemento psicossociológico de pressão da massa sobre os indivíduos (receio de exclusão). O estatuto normativo significa a afirmação de valores coletivos não reconhecidos (por ultrapassá-lo) no elemento constringente do grande número, ainda que a pressão seja potencializada pela Mídia.

Quer dizer é preciso que a norma social de reforço configure os valores previamente aceites cuja afirmação se observa justamente na vigência e na eficácia do regime de um ato instituinte tornado obrigatório em sua não-transformação para ato voluntário ou facultativo como seria de esperar no âmbito instituinte.

Dado que a legislação é incapaz de forçar alguém a ser livre, e considerando o voto político como devendo ser livre de coação, temos em definitivo que o valor obedecido no voto obrigatório não é a lei instituída. Há, pois, uma moralidade social particular no conformismo como conduta regular afirmando a aceitação em face desse ato, moralidade social esta cuja configuração em atitude deve ser explicitada.

Neste caso há que distinguir por um lado o sistema dos aparelhos organizados/administrativos e, por outro lado, o mencionado conformismo em face da imposição burocrática levando à aceitação e mais do que isso à prática do voto obrigatório como se fosse uma paradoxal preferência coletiva.

Quer dizer, o conformismo de que falamos pode ser tudo menos mera decorrência da implantação de um sistema específico dos aparelhos organizados/administrativos, dotados com instância para controlar a prática do voto obrigatório: este sistema não produz o conformismo, mas o pressupõe.

Aliás, trata-se de um sistema bem diferenciado pelo estabelecimento da instância controladora como assimilando nela mesma em modo surpreendente certas atribuições próprias à Divisão de Poderes [4], sendo justamente esta especificidade que demanda e justifica uma análise sociológica exclusiva desse regime do voto obrigatório tomado em “separata” dos demais componentes do sistema político democrático.

Com efeito, no regime do voto obrigatório se trata de um conformismo “à outrance”, esdrúxulo, bem distinto daquele conformismo já visto nos comportamentos habituais ou apáticos, relegados à inércia diante do statu quo. No conformismo para com a imposição do voto obrigatório a passividade não equivale à abstenção, não é ausência. Neste caso a indiferença típica de todo o conformismo para com a ordem imposta exige um ato, exige o comparecimento do indivíduo ao ato de votar.

Desta forma, o conformismo para com o voto obrigatório revela-se obediência social, obediência no sentido de atendimento à ordem eleitoral como exigência difusa não de uma vontade, mas sim a exigência em si mesma como valor superior, portanto compreendendo uma atitude moral do tipo juramento [5]. Tal é a configuração da norma social de reforço que garante a vigência e a eficácia do regime do voto obrigatório, sua não-transformação para o voto voluntário.

Tal é o conformismo por obediência social que constitui a cidadania tutelada, dependente. Ou seja, no ato de votar, lembrando os grupos estamentais característicos das sociedades feudais prolongando-se em certas ambiências tradicionais, o eleitor faz por sua vez um voto de obediência no sentido dos votos de fé, só que, num espantoso círculo vicioso, jura obedecer ao próprio instituto do voto obrigatório que está a praticar.

Daí ser inevitável a inferência conclusiva de que, na configuração da norma social de reforço ao voto obrigatório como elemento da atitude do conformismo por obediência social afirma-se uma modalidade da nostalgia estacionária, estagnada, passiva, já constatada por Saint-Simon como referida ao regime monárquico, o Ancien Régime [6].

***

Etiquetas:

Comunicação, crítica, história, ideologia, relações humanas, sociologia, século vinte.


[1] Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon (París, 17 de octubre de 1760 - id., 19 de mayo de 1825). Filósofo y teórico social francés. Ver “La Physiologie Sociale, págs. 53/55

http://classiques.uqac.ca/classiques/saint_simon_Claude_henri/physiologie_sociale/physiologie_sociale.html

[2] A análise da decadência do Estado e do Contrato na passagem para o século XX é caracterizada por Georges Lukacs como “fossilização do liberalismo” ou, mais precisamente, fossilização da ideologia liberal, em referência direta a Saint-Simon, mas contrastando com a análise deste último para o século XIX, onde o quadro social que possibilita a percepção da modernização é a atitude liberal tomada como afinada às mudanças sociais. Ver: ‘Le Roman Historique’, tradução Robert Sailley, prefácio C-E. Magny, Paris, Payot, 1972, 407 pp. [1ªedição em Alemão: Berlim, Aufbau, 1956], capítulos III e IV, pp.190-401.

[3] Ver capítulo anterior neste livro.

[4] As relações com os eleitores é prerrogativa dos partidos políticos cujo foro é o Congresso Nacional.

[5] Em nosso artigo “A Ficção nas Eleições” inserido neste livro já foi remarcado que a noção de obediência social como levando ao juramento tem procedência na sociologia de Jean Paul Sartre.

[6] Tanto mais notado no caso da cultura brasileira da dependência, onde o regime monárquico e neocolonial criou e consolidou a autoridade burocrática, reconhecida no modelo cristalizado designado por “Estado Cartorial” prolongando-se na República e dominante no autoritarismo.

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