quinta-feira, 21 de agosto de 2008

PROUST E OS ROMÂNTICOS





Fragmento do e-book "SOCIOLOGIA DA LITERATURA – I: LEITURA DE PROUST: UMA ABORDAGEM INSPIRADA POR SAMUEL BECKETT"

http://jl-praxis.blogspot.com/2008/02/sociologia-da-literatura-i-leitura-de.html


(...) Já mencionamos que Proust é demasiado efetivista e que se essa orientação o aproxima de Dostoyevski, não só o diferencia do simbolismo mais intelectual de um Baudelaire abstrato e discursivo, mas o levará a uma posição solitária e independente entre os simbolistas.

Beckett põe em relevo que o tratamento praticado por Proust do simbolismo como realidade exclui sua utilização como “mera transmissão pictórica de um conceito”, no caso o "conceito de elevação da alma" notado no procedimento de Dante Alighieri e no seu fracasso com as figuras alegóricas simbolizadas em Lúcifer, no Purgatório e na Águia do Paraíso, cujo sentido no dizer de Beckett é puramente “convencional e extrínseco” [1].

Se o ponto de partida de Proust situa-se no simbolismo ou nas cercanias deste não se pode desconsiderar que, como já mencionado, nesse Proust demasiado efetivista o objeto pode ser um símbolo vivo, porém um símbolo de si mesmo.

Por sua vez, tomado por diferença de certa literatura voltada para retratar – como os realistas e naturalistas – o efetivismo constitui uma orientação fundamental a esclarecer-lhe o individualismo sentimental e a desenvolver-lhe o princípio moral e artístico da reflexão estética de que “só a arte importa para o artista”, apreciado por Beckett em estreita ligação com o problema da objetividade literária levando à descoberta da realidade essencial, comum ao presente e ao passado.

Daí Beckett chamar a "reduplicação" de "revelação proustiana", no sentido da descoberta da obra de arte como preexistente ao artista.

Vale dizer: a identificação da experiência imediata à experiência passada, a repetição da ação ou reação passada no presente, que vimos acontecer com a intervenção da memória involuntária, importa no dizer de Beckett “uma participação do ideal e do real, o símbolo e a apreensão direta”.

Tal participação libera a realidade essencial – a qual por sua vez nem a vida contemplativa nem a vida ativa estão em medida de atingir, dada a impossibilidade de um contato direto e puramente experimental entre o sujeito e o objeto (do desejo), separados que são pela consciência da percepção do sujeito. Tal a necessidade de arte.

Beckett considera que o efetivismo de Proust implicando certo ceticismo ante a causalidade o aproximaria dos românticos.

Entretanto, limitando esta asserção, nota o seguinte:

(1º) - em diferença do artista clássico se elevando artificialmente fora do tempo a fim de dar realce à cronologia e dar causalidade ao desenvolvimento temporal, em Proust, pelo contrário, é sumamente difícil seguir a cronologia, a sucessão dos fatos espasmódicos, a sucessão dos seus personagens ou de seus temas.

Beckett é conclusivo a este respeito e nos diz que:

(2º) - se tais fatos, personagens e temas parecem obedecer a “uma necessidade interior quase demente”, são apresentados e vão sendo construídos com um esplêndido desprezo dostoyevskiano pela mediocridade de uma concatenação verossímil.

(3º) - Quer dizer se, por sua vez, o artista romântico é muito interessado pelo Tempo, tem consciência da importância da recordação na inspiração, mostrando-se, porém, inclinado a sensacionalizar pela memória espacializada as evocações do Eu, Proust, ele próprio, “trata este Eu com força patológica e sobriedade".

O tratamento dado por Proust ao Eu como ultrapassando o estilo dos românticos pode ser bem compreendido na equiparação à primeira pessoa da narrativa das “Mil e Uma Noites”, com Sherazade abrindo a página do conto em que vira contista e confundindo no Eu-próprio o Eu dos personagens, da mesma maneira em que o narrador proustiano dá origem ao livro dentro do livro, confirmando a arte do espelhismo, já posta em relevo por Beckett.

Segundo Bernard de Fallois, o personagem proustiano que diz “eu” na frase de Proust, isto é o narrador, mais do que um personagem estrito, deve ser considerado como um tom permitindo a Proust solucionar sua inquietação intelectual de que nenhum gênero literário lhe servia, mas todos os gêneros lhe apeteciam: “mediante os artigos, os ensaios, as cartas, os comentários, Proust se viu levado quase à força a adotar essa primeira pessoa que irá dirigir adiante todos os seus relatos”.

(...) “Passará quase sem dar-se conta da crítica ao romance, da filosofia às memórias”, tal a arte do personagem que diz “eu” – equiparado por B. De Fallois ao encantador dasMil e Uma Noites”, já que será com esse personagem-narrador que em Proust se confundem todos os “Eu” do romantismo: “o de Michelet e o de Saint-Beuve; o de Chateaubriand e o de Nerval”. É Um e é múltiplo: a primeira pessoa em Proust outorga a unidade de seu estilo, o mais rico e variado que já existiu nas letras modernas.

Beckett condensa sua reflexão sobre a ultrapassagem da causalidade em Proust comentando “os lamentos do narrador” na Parte Inicial – Tansonville – do Primeiro Volume de “Le Temps Retrouvé”.

Esclarece-nos que, na medida em que desdobram considerações do narrador sobre a qualidade da observação no artista, tais lamentos sobre a “falta de talento” compreendem o problema da “tábua dos valores da impressão artística”, a qual Beckett chama “tábua dos coeficientes de penetração no mundo dos fenômenos objetivos”, a que se chega mediante o cotejo e a diferenciação da situação individual do artista em face do cientista.

Com efeito, o que decepcionou o narrador após leitura de “Le Journal des Goncourt”, por ele considerado brilhantemente contaminado de informação, foi sentir-se limitado ao que supunha um hábito de observação não artístico a torná-lo “incapaz de registrar a superfície”, tal como nessa l’art du journal.

Beckett porá em relevo em tal decepção do narrador o contraste marcado por Proust com o “apreciado talento periodístico” notado no “Journal”, e nos aclara sobre a primazia do que se poderia chamar “a percepção instintiva”, compreendendo a intuição dentro do mundo proustiano.

O narrador sofre ao se dar conta de que ou ele carece de talento ou a arte (a tal l’art du journal) carece de realidade, já que ele não consegue ver “o copiável” e portanto não alcança a qualidade composta no “brilhantemente contaminado de informação” que é “Le Journal des Goncourt ”.

Dá-se conta de que o fator comum entre sua falta de talento ou deste “talento” e a falta de realidade da arte ou desta “arte” é que a ele lhe interessa menos o que se diz do que a forma em que se diz.

Beckett tirará desta constatação formulada pelo narrador, em modo correlativo, a proporção pela qual os estímulos intermédios chegam a ativar ou provocar a reação do narrador com mais imposição do que os estímulos extremos, capitais, vias do sofrimento ou do êxtasis, que funcionam como os hieróglifos – dirá ele logo na seqüência. (...)

***

Artigo reproduzido e aperfeiçoado pelo próprio autor Jacob (J.) Lumier



[1] Vimos acima que Beckett repele como delirante a imagem de um paraíso com retenção da personalidade de que se trata em Dante Alighieri.

Por ser um artista (orientado para o deleite extático) e não um profeta menor, prossegue Beckett, Dante não pode impedir que sua alegoria (conceitual) “se aquecera e se eletrificasse convertendo-se em anagogia”, o sentido místico substituindo-se ao literal.


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