quarta-feira, 28 de maio de 2008

SOCIOLOGIA, LITERATURA E FANTASIA: Os critérios do fato literário e as condições de uma sociologia da literatura.

O escritor é um fabulador: não diz a verdade e é sempre a verdade que ele diz... à sua maneira.

Sociologia, Literatura e Fantasia:

Os critérios do fato literário e as condições de uma sociologia da literatura.

Comentários de leituras porJacob (J.) Lumier

As dificuldades antepostas a uma sociologia da literatura ligam-se à orientação intelectual do chamado espírito burguês afirmando a independência total da cultura e da arte em relação às formas sociais, de tal sorte que a interpretação da arte não estaria contida na vida social. Daí surge o obstáculo da interdição pela sociedade.

O receio de um efeito literalmente ameaçador da ordem torna o fato literário negado na sua significação, combatido como pura fantasia. Distingue-se uma espécie de respeito ao fato literário envolvendo-o em certo mistério.

Desta atitude provêm duas representações desfavoráveis à sociologia da literatura, seguintes: (a) – uma, a chamada teoria do gênio, que interpreta a figura do autor em termos do inexplicável e inesperado no concerto das paixões e dos pensamentos humanos; (b) – outra, referida à elaboração da obra, é a teoria romântica da inspiração, do mistério da criação, etc. Além disso, o espírito burguês pode levar os escritores a não gostarem de se ver integrados pela sociologia [1].

Podem-se observar algumas tentativas de pesquisa que, não obstante o pensamento objetivo, pouco favoreceram a sociologia da literatura. Umas porque mantiveram a opacidade intocável do fato literário; outras porque acentuaram a sua redução. No primeiro caso, resume-se a tentativa mais conhecida que foi a de TAINE, incluindo os seus colaboradores. No segundo caso, nota-se a tentativa marxista e a psicanalítica.

Comenta-se que TAINE esperava fundamentar uma ciência positivista e determinista da literatura tomando como motivos de explicação (a) – a descoberta em cada escritor de uma faculdade mestra; (b) – a gênese dessa faculdade mestra a partir das suas três famosas condições: a raça, o meio e o momento. O dogmatismo de TAINE é flagrante na analogia com as ciências naturais. No prefácio de sua obra “La Fontaine et ses Fables”, o ponto de vista naturalista vem a ser aplicado ao homem, tomando-o como um animal de espécie superior que produz as filosofias e os poemas pouco mais ou menos como os bichos da seda tecem os seus casulos e as abelhas elaboram os favos [2].

Quanto aos seus continuadores, se repele o simplismo na aplicação do dogmatismo de TAINE, questionando-se, sobretudo a abordagem analítica redutiva na qual a obra literária, tida como mistério inefável e impenetrável, vem a ser reportada a um fator mais ou menos arbitrariamente escolhido.

Em relação à tentativa marxista, por sua vez, se lhe reconhece o mérito sociológico de empreender a inter-relação do espírito e das suas produções com os quadros sociais. O primeiro critério de análise marxista da obra literária é a fidelidade à realidade social. Nada obstante, a tentativa marxista de reduzir a literatura a um fato de conhecimento mediante a tipologia das visões de mundo atribuída a Georges Lukacs, é censurada por ameaçar a especificidade do fato literário. Ao traçar um método comum a todas as obras de pensamento tornou-se inevitável por conseqüência desprezar o que distingue precisamente o fato literário dos outros fatos [3] .

Censura idêntica se aplica à tentativa psicanalítica, em cuja abordagem necessariamente se tem de partir sempre de uma redução implicando uma negação da especificidade. Por contra, as condições de uma sociologia da literatura implicam a distinção entre fato literário e fato de conhecimento.

·
O problema das relações com a sociologia do conhecimento

Com efeito, já observamos que o fato literário é para uma sociedade um modo de ela tomar consciência de si própria. Daí advem o tabu que acentua exatamente a especificidade do fato literário e faz reconhecer no mesmo um fato de valor não confundível com as suas condições genéticas nem com as suas condições de sobrevivência, nem tampouco com as intenções do seu criador, nem enfim com as suas repercussões psicossociais.

Aquilo que há na obra literária pelo qual se chega à afirmação de que a literatura satisfaz certa necessidade cultural não utilitária, ou seja: o valor literário, é inicialmente o elemento que difere um livro de poemas ou um romance de um jornal. Sem dúvida, o qualificativo e o valor que ocorrem imediatamente aos leitores, pelo que eles identificam o fato literário, não é o mesmo para todos os públicos.

A identificação do fato literário seja como romance ou poema ou ensaio se define também socialmente e não apenas pelo método, sem que isto impeça tomar-se o valor literário como ponto de partida da pesquisa sociológica. Tanto é assim que, para Albert MEMMI, a tarefa específica dessa pesquisa é a sociologia do fato literário, que este autor qualifica como uma sociologia privilegiada diante do objeto impresso. No seu dizer, trata-se da sociologia do que é adequado ao fato literário, do que neste não coincide com outra coisa, não coincide com o escrito como mercadoria, como produto de transformação, etc.[4]

Na busca dessa adequação é que se aprofunda o problema das relações com a sociologia do conhecimento chegando-se aos seguintes resultados: (a) – se um fato literário pode nos ensinar certas coisas e se a literatura é por isso uma das técnicas de comunicação social, o sociólogo deve precaver-se, entretanto de que é sempre possível uma distorção dos fatos: as informações dadas pelos escritores não atendem à finalidade de uma enquête.

Quer dizer, (b) – embora possa admitir-se que o autor tenha a intenção de ensinar-nos certas coisas, as intenções do autor de obra literária são evasivas ou mudam de rumo no decurso da atividade. O que diz é quase tão importante quanto a forma de dizê-lo, forma esta que por sua vez influi sobre o conteúdo do discurso acabando por transformá-lo.

O escritor é um fabulador: não diz a verdade e é sempre a verdade que ele diz... à sua maneira. A distorção é sempre possível, seja em conseqüência de uma reconstrução imaginativa, por razões de forma ou simplesmente por ardil (ditado por razões sociais).

A finalidade de uma obra literária não é a mesma de um documento , nada obstante admite-se possível interpretar as informações dadas pelos escritores considerada a finalidade estética da obra literária, na qual não se trata de representar a realidade social - para o que os jornais da época seriam superiores a todos os romances do mesmo período.

·
A importância de Goethe ou de Shakespeare não provém de sua filosofia, mas de terem criado um objeto novo que é o objeto literário.

Desde o ponto de vista da finalidade literária e em face dos esforços de interpretação, o fato literário não pode ser reduzido a significações sociais nem a significações psicológicas para compreender, ajuizar e classificar as obras.

A significação considerada como atributo de uma visão de mundo mais ou menos coerente (uma weltanschaung) levaria a que os escritores surgiriam com espantosa insignificância ao lado dos pensadores: que seria um Rousseau ao lado de Kant? Gide comparado a Nietzsche? Por contra, as noções de objeto literário e eficácia estética levam a repensar em outro modo a significação aplicada ao fato literário: a importância de Goethe ou de Shakespeare não provem da sua filosofia, mas de terem criado um objeto novo que é o objeto literário.

Nesse objeto se encontram dotadas da máxima eficácia estética certo número de idéias (uma visão de mundo), mas também certo número de emoções. Se, favorecendo a especificidade do fato literário como configuração de valor, admitirmos que a eficácia está mais próxima da afetividade do que da idéia teríamos confirmada a constatação de que algumas idéias afetivamente muito significativas podem ser infinitamente mais eficazes do que uma weltanschaung.

Nesta perspectiva sobressai que a sociologia da literatura deve ser também uma sociologia da fantasia, de sorte que, ao se orientar para a apreensão do desejado em literatura, assume um ponto de vista interior ao fato literário, trazendo para o campo da sociologia as significações que a própria fantasia comporta ou elucida.

Antes de nos ensinar coisas, tais significações são aquelas de que nos ocupamos: a fantasia elucida de maneira tão indireta e tão variada que todos os achados, disfarces, fugas, subterfúgios estranhos devem ocupar-nos pelo menos tanto quanto podem ensinar-nos.

Albert Memmi sustenta que uma sociologie du voeu [5] implica e ultrapassa a noção de consciência possível aplicada na sociologia da literatura por Lucien Goldmann, entendida como noção que dá conta das aspirações tendenciais. Portanto, sendo um fato de valor, o objeto literário deve ser examinado como composto não somente de um elemento de significação, mas de jubilo, de relação com o criador, de relação com os leitores, etc.


Palavras chaves: fantasia / visão de mundo / fato de valor / eficácia estética /

/ objeto literário.

Categorias: Comunicação social / Sociologia / Literatura / Pesquisa / Conhecimento.

©2007 Jacob (J.) Lumier



[1] Ver o Artigo de Albert MEMMI intitulado “Problemas de Sociologia da Literatura”, publicado como colaboração no Tratado de Sociologia-Vol. 2, dirigido por Georges Gurvitch., Porto, Iniciativas editoriais 1968 (1ªedição em Francês: Paris, PUF,1960).

[2] Apud Albert Memmi, op.cit.

[3] Ibid. ibidem.

[4] Albert Memmi, op. cit.

[5] Voeu = aspiração como prece; desejo; engajamento como promessa ou juramento.


Este artigo é extraído do e-book de Jacob (J.) Lumier
“A SOCIOLOGIA DO ROMANCE À LUZ DA COMUNICAÇÃO SOCIAL”
***


Creative Commons License
Esta obra está bajo una licencia de Creative Commons.

Nenhum comentário:

BLOGOSFERA PROGRESSISTA

Arquivo do blog

Seguidores

JACOB (J.) LUMIER NA O.E.I.

Partilhar


Share/Save/Bookmark Support CC Add to Google Add to Technorati Favorites Technorati Profile Compartilhar Delicious Bookmark this on Delicious
Central Blogs

Liga dos Direitos do Homem

Greenpeace

Greenpeace
L'ONG non violente, indépendante et internationale de protection de l'environnement