quarta-feira, 9 de julho de 2008

Cidadania Plena, Estado Cartorial e Conformismo: Notas de sociologia sobre a questão da motivação nas eleições em regime de voto obrigatório.

Cidadania Plena, Estado Cartorial e Conformismo:

Notas de sociologia sobre a questão da motivação nas

eleições em regime de voto obrigatório.

Trata-se da questão de saber por que a sociedade ainda não restabeleceu o reconhecimento da liberdade política no ato de votar e como se explica a vigência e a eficácia do regime do voto obrigatório, sua não-transformação para o voto voluntário ou facultativo.

Parte Primeira

Não se vê de onde procede a motivação política no regime eleitoral do voto obrigatório, já que não é verificada no ato de votar. Desprovida de motivação política, a eleição sob voto obrigatório é a configuração do imaginário discursivo da cidadania tutelada: é mais um fenômeno cultural de periferia e país dependente do que realização política. Imagina-se que se está criando critérios e valores para as políticas públicas e as relações institucionais nas campanhas eleitorais ao passo que se participa de um sarau à fantasia com fundo burocrático e coercitivo: é a festa dos aparelhos administrativos com a indústria cultural (notadamente a Mídia) e a cultura de massa (imagens do chefe ou do líder).

Na cidadania plena, como regime de voto pelo comparecimento desobrigado, a tendência política que surge desse voto delimita o campo das barganhas e torna
superada a crença na ordem do mais forte.

Neste sentido, o voto obrigatório praticado em cidadania tutelada [1] mostra-se prejudicial à Democracia porque desfavorece a ultrapassagem da situação em que o homem é o lobo
do homem, nada acrescentando para que as políticas públicas prevaleçam.

No regime de cidadania tutelada, ao ser obrigatório o voto não é produzido e a presença do eleitor no ato não releva de motivação política, mas da imposição burocrática.

Situação de dependência essa reforçada pela constatação de que, além das multas, se estabeleceram sanções administrativas sobre as prerrogativas de nacionalidade (cuja inconstitucionalidade já se admite) para punir a pessoa do eleitor desobediente ou que supostamente se recusa a comparecer nos locais de votação.

Bem entendido: o eleitor que não comparece por qualquer motivo comum está previamente enquadrado num ato insurgente e passa a ser tratado como tendo se recusado a obedecer à disposição burocrática e, à revelia, já sofre sanções administrativas de tal forma que a ausência deste eleitor comum por motivos ordinários passa a ser uma ausência produzida, uma ausência crítica, uma contradição do sistema burocrático posta pelo próprio sistema.

Mas o assunto não é tão simples assim. Há um conformismo fundamental no comparecimento dos eleitores.

Como se sabe, em um sistema de condutas previamente reguladas compreendendo uma ou várias organizações complexas integradas em sociedades mais ou menos penetradas pelo mundo da comunicação social, o conformismo pode ser verificado em uma ambiência microssocial e aparecer como conduta regular afirmando a aceitação em face da recorrência de um ato coletivo tornado instituído como obrigatório.

Como diria Saint-Simon, a aceitação estacionária neste caso integra um modelo cristalizado em que, para impor como obrigatório o ato coletivo, inclui em conseqüência certa ordem ou disposição conformista visando dirigir ou bloquear a manifestação efervescente de um Nós instituinte como forma de sociabilidade [2].

Ora, muito além do psicologismo e da mera acomodação às condutas dominantes preestabelecidas, e visando compreender essa manifestação do conformismo resistindo ao apelo do componente de liberdade em um ato originalmente de escolha multifária, deve-se pôr em relevo exatamente no instituído a configuração particular da norma social que reforça e garante a recorrência do ato de liberdade tornado obrigatório.

Isto porque se constata logo de início que a extensão da cultura de massa com suas imagens do chefe ou do lider alcança somente o estado mental da norma social de reforço, imprimindo a motivação somente psicológica para o conformismo na situação de imposição do patamar organizado sobre um ato em realidade instituinte, mas tornado instituído como obrigatório.

Motivação esta resultante do receio de exclusão suscitado pela pressão virtual do maior número.

Vale dizer, sendo compelidos ao local do ato por efeito da pressão virtual, os sujeitos individuais aceitam seu comparecimento não por uma razão nem por motivação de um simbolismo, mas em face de uma censura imaginária creditando de antemão que supostamente “todo o mundo vai” (comparecer).

***

Do ponto de socio-lógico, é preciso que a norma social de reforço configure os valores previamente aceites cuja afirmação se observa justamente na vigência e na eficácia do regime de um ato instituinte tornado obrigatório em sua não-transformação para ato voluntário ou facultativo, como seria de esperar no âmbito instituinte.

A situação que se tem em vista aqui é o regime do voto obrigatório nas eleições praticadas em alguns Estados de Direito democrático, notadamente o regime de voto obrigatório no Brasil, já que em tais regimes é constatado precisamente que a extensão da cultura de massa explica tão só as manifestações das correntes dos sujeitos individuais em direção ao comparecimento massivo nos locais de votação, uma expectativa do sistema, mas não esclarece nem de longe a vigência de tal ato instituinte tornado obrigatório e recorrente.

Ora, acontece que por definição a norma social de reforço ultrapassa o elemento psicossociológico de pressão da massa sobre os indivíduos (receio de exclusão). O estatuto normativo significa a afirmação de valores coletivos não reconhecidos (por ultrapassá-lo) no elemento constringente do grande número, ainda que a pressão seja potencializada pela Mídia.

Quer dizer, é preciso que a norma social de reforço configure os valores previamente aceites cuja afirmação se observa justamente na vigência e na eficácia do regime de um ato instituinte tornado obrigatório em sua não-transformação para ato voluntário ou facultativo, como seria de esperar no âmbito instituinte.

Por outras palavras: trata-se da questão de saber por que a sociedade ainda não restabeleceu o reconhecimento da liberdade política no ato de votar.

Dado que a legislação é incapaz de forçar alguém a ser livre, e considerando por definição o voto político como devendo ser livre de coação, temos em definitivo que o valor obedecido no voto obrigatório não é a lei instituída.

Há, pois, uma moralidade social particular no conformismo como conduta regular afirmando a aceitação em face desse ato, moralidade social esta cuja configuração em atitude o sociólogo deve tornar explicitada.

Neste caso há que distinguir, por um lado, o sistema dos aparelhos organizados/administrativos e, por outro lado, o mencionado conformismo em face da imposição burocrática levando à aceitação e mais do que isso à prática do voto obrigatório como se fosse uma paradoxal preferência coletiva (o povo gosta de ser castigado).

Quer dizer, o conformismo de que falamos pode ser tudo menos mera decorrência da implantação de um sistema específico dos aparelhos organizados/administrativos, dotados com instância para controlar a prática do voto obrigatório: este sistema não produz o conformismo, mas o pressupõe.

Aliás, trata-se de um sistema bem diferenciado pelo estabelecimento da instância controladora como assimilando nela mesma em modo surpreendente certas atribuições próprias à Divisão de Poderes [3], sendo justamente esta especificidade que demanda e justifica uma análise sociológica exclusiva desse regime do voto obrigatório tomado em “separata” dos demais componentes do sistema político democrático.

Com efeito, no regime do voto obrigatório se trata de um conformismo “à outrance”, esdrúxulo, bem distinto daquele conformismo já visto nos comportamentos habituais ou apáticos, relegados à inércia diante do statu quo.

No conformismo para com a imposição do voto obrigatório a passividade não equivale à abstenção, não é a ausência. Neste caso, a indiferença típica de todo o conformismo para com a ordem imposta exige um ato, exige o comparecimento do indivíduo ao ato de votar.

Desta forma, o conformismo para com o voto obrigatório revela-se obediência social, obediência no sentido de atendimento à ordem eleitoral como exigência difusa não de uma vontade, mas sim a exigência em si mesma como valor superior, portanto compreendendo uma atitude moral do tipo juramento [4] . Tal é a configuração da norma social de reforço que garante a vigência e a eficácia do regime do voto obrigatório, sua não-transformação para o voto voluntário.

Tal é o conformismo por obediência social que constitui a cidadania tutelada, dependente. Ou seja, no ato de votar, lembrando os grupos estamentais característicos das sociedades feudais prolongando-se em certas ambiências tradicionais, o eleitor faz por sua vez um voto de obediência no sentido dos votos de fé, só que, num espantoso círculo vicioso, jura obedecer ao próprio instituto do voto obrigatório que está a praticar.

Daí ser inevitável a inferência conclusiva de que, na configuração da norma social de reforço ao voto obrigatório como elemento da atitude do conformismo por obediência social afirma-se uma modalidade da nostalgia estacionária, estagnada, passiva, já constatada por Saint-Simon no estudo das fossilizações sociais como referidas ao regime monárquico, o Ancien Régime [5] .

***



[1] Legado do chamado Estado Cartorial, fundamentalmente baseado nos instrumentos fiscalistas de arrecadação, o prolongamento da produção fiscalizada passando à cidadania tutelada na base do regime eleitoral do voto obrigatório mostra-se um obstáculo para desvelar o manto da obscuridade no domínio político.

[2] Os elementos microssociais não têm absolutamente nada a ver com o individualismo, o atomismo e o formalismo sociais, mas criam inclusive referências objetivas ao mundo dos valores, como se constata no estudo microssociológico dos Nós. Sem dúvida, é preciso evitar a postura dogmática que se monta em torno do desconhecimento dos problemas da microssociologia, evitando notadamente o desprezo pelo estudo dos Nós como expressão concreta da consciência coletiva, isto é, como focos das interpenetrações das consciências e das condutas, de suas fusões parciais constituindo os fenômenos de participação direta dos indivíduos nas totalidades espontâneas.

[3] Para além dos cartórios, dado que não há voto sem legenda, as relações com os eleitores são prerrogativas dos partidos políticos, cujo foro é o Congresso Nacional.

[4] Sobre a procedência sociológica da noção de obediência social como levando ao juramento, sabe-se que há na sociologia de Jean Paul Sartre exposta na sua obra “La Critique de la Razon Dialectique” (ver "Tome I: Théorie Des Ensambles Pratiques, précedé de Questions de Méthode", Paris, Gallimard, 1960, 756 pp.) um esforço desesperado para chegar aos Nós sob o aspecto da comunidade. O grupo na visão existencialista não pode ser tornado inteligível sem a dialética sartreana entre “projeto, juramento, invenção, medo”, que é tida como a fonte da “dimensão da comunidade” e, mais exatamente, a fonte do que Sartre chama “praxis comum”, que é ao mesmo tempo uma ligação de “reciprocidade ambivalente” (Ver os comentários de Gurvitch, Georges: “Dialectique et Sociologie”, Paris, Flammarion, 1962, 312 pp., col. Science, págs. 215 sq.).

[5] Fossilizações sociais essas tanto mais notadas no caso da cultura brasileira da dependência, onde o regime monárquico e neocolonial criou e consolidou a autoridade burocrática, reconhecida no modelo cristalizado designado por “Estado Cartorial” prolongando-se mumificado na República e irracional nos autoritarismos.



Artigo elaborado por Jacob (J.) Lumier

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